A MACONHA DESMISTIFICADA


Cientistas brasileiros discutem benefícios do  consumo medicinal e os efeitos nocivos da droga


Jornal O Globo - 14/10/07
Antônio Marinho


A maconha é a droga ilegal mais consumida do mundo e tem crescido a discussão sobre seus benefícios terapêuticos. Estudos já mostraram que ela pode ser eficiente no controle da anorexia e do mal-estar associados à quimioterapia. Componentes da planta teriam efeito neuroprotetor e anticonvulsivo, com perspectivas para o tratamento de epilepsia e a redução de danos neurológicos por acidente vascular cerebral. No livro “Maconha, cérebro e saúde” (Ed. Vieira & Lent), dois cientistas brasileiros apresentam os mais novos estudos sobre a droga e dizem que já está na hora de o país discutir o uso médico e os riscos do consumo abusivo.

Em seu livro recém-lançado, Renato Malcher-Lopes, do Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia da Embrapa, e Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, lembram que o cérebro produz moléculas similares aos princípios ativos da planta.

E, de acordo com eles, não há evidências de que a maconha cause danos ao cérebro, mesmo em casos crônicos. Na verdade, o efeito neuroprotetor de alguns componentes parece ser eficaz no controle da degeneração associada ao mal de Alzheimer. Porém, o consumo por pessoas predispostas a transtornos psicóticos aumentaria a chance de desenvolver tais problemas. Na entrevista a seguir, Malcher-Lopes, diz que é preciso tratar o assunto de forma mais realista e avaliar as perdas e ganhos de uma descriminação da droga.

USO TERAPÊUTICO: “No Brasil e no resto do mundo muitos usuários de maconha a utilizam para aliviar sintomas de ansiedade e depressão, mesmo sem dar conta de que estão se automedicando. Há mulheres que se valem da maconha contra tensão pré-menstrual, cólicas e enxaqueca. Em países como Estados Unidos, Canadá e Holanda o uso com orientação médica já é uma realidade. No Brasil há relatos de médicos que de forma reservada sugerem o uso para alívio de sintomas graves em pessoas com câncer e epilepsia. Este caráter clandestino se deve ao estigma e às dificuldades que a nossa lei impõe ao uso médico”.

VÍCIO: “Não é verdade que a maconha vicie mais que álcool ou nicotina. Demonstrar cientificamente que a maconha causa vício não é simples. O modelo experimental usado para esta finalidade indica que animais não adquirem facilmente o hábito de se auto-inocular com THC, o mais importante princípio ativo da maconha. Ao contrário do THC, a nicotina e o álcool são altamente reforçadores do comportamento de auto-administração. O uso freqüente ou crônico da maconha é normalmente bem mais raro do que seu uso ocasional ou moderado. Em geral, mesmo os usuários crônicos enfrentam poucos problemas para abandonar a maconha, quando desejam. O desenvolvimento de tolerância aos efeitos da maconha tende a desestimular o seu uso crônico. Isso não significa que ela não possa causar dependência psicológica, mas creio isto está mais associado às idiossincrasias de cada um do que às características farmacológicas da droga usada”.

MEMÓRIA: “Não há evidências de que os componentes da maconha matem neurônios. Ao contrário, alguns carabinóides da planta protegem os neurônios contra radicais livres. A maconha desvia a atenção do indivíduo favorecendo a introspecção reflexiva ou a concentração num aspecto do ambiente, o que em geral ocorre em detrimento da capacidade de se prestar atenção de forma distribuída. Enquanto dura seu efeito, a maconha reduz muito a capacidade de se armazenar memórias temporárias, a ponto de dificultar a conclusão de frases ou linhas de raciocínio mais longas. Isto é transitório e não afeta a estabilidade ou a recapitulação de memórias previamente consolidadas”.

DEPENDÊNCIA: “Diferentemente de cocaína, heroína e álcool, a maconha não causa dependência fisiológica. Os circuitos neuronais envolvidos na regulação do equilíbrio fisiológico se adaptam à presença constante dessas drogas de forma diferenciada. Heroína e cocaína ajustam a fisiologia de tal forma que com a interrupção do uso as ações que dependem da regulação exercida pelo sistema nervoso entram em colapso, causando síndrome de abstinência grave e duradoura”.

ABSTINÊNCIA: “A síndrome de abstinência da maconha em humanos é amena e dura poucos dias, sendo caracterizada, sobretudo, por irritabilidade e diminuição do apetite. De maneira geral, a maconha é menos nociva do que o álcool, o tabaco, a cocaína e a heroína. Isto continuaria sendo verdade mesmo que as outras drogas não causassem dependência fisiológica. Nos casos específicos da cocaína e da heroína, o maior agravante é a tolerância que essas drogas causam, isso faz com que os usuários precisem de doses cada vez maiores para obter os efeitos desejados. A overdose do álcool raramente mata, mas pode levar ao coma. Maconha produz tolerância, mas não leva ao coma ou à morte por overdose”.

DEPRESSÃO: “A superação de qualquer dependência psicológica parece depender mais das características e do estado psicológico do individuo do que da droga. Da mesma forma que a dependência psicológica pode estar associada a um estado depressivo, eventos que representem reviravolta positiva na vida podem gerar estado de bem-estar estável para neutralizar a dependência. Por outro lado, se as causas orgânicas e/ou circunstanciais da depressão (ou da ansiedade) permanecem, a dependência psicológica pode se aprofundar. É mais fácil se livrar da dependência psicológica da maconha, se ela ocorrer, do que da dependência fisiológica das outras drogas, até por que essas últimas também podem levar à dependência psicológica”.

GESTANTES: “Filhos de mães que usaram maconha na gravidez tendem a apresentar desempenho cognitivo pior em comparação com filhos de mães que não a consumiram. A gestante deve evitar quaisquer drogas lícitas ou não”.

DESCRIMINAÇÃO: “Quem assiste ao filme ‘Tropa de elite’ tem um retrato realista da brutalidade associada ao combate às drogas feito pelo Estado no Brasil. Devemos questionar porque, afinal, tanta morte e desgraça em ambos os lados devem ocorrer à custa de nossos impostos para que se tente impedir, em vão, que a maconha chegue às mãos de cidadãos adultos. O álcool pode ser muito mais prejudicial à saúde e à sociedade do que a maconha. Ainda assim, lidamos no Brasil com os riscos que o uso abusivo do álcool representa, inclusive para crianças e adolescentes, sem derramar rios de sangue. Na Holanda, um jovem epiléptico ou uma senhora com câncer vão à farmácia comprar maconha medicinal e não são perturbados por policial ou bandido. A realidade encoraja a discussão acerca da regulamentação do uso da maconha com regras semelhantes àquelas aplicadas ao álcool, restringindo a venda a lojas credenciadas e proibindo a menores. Esta medidas afastariam usuários de maconha do submundo criminoso”.

Jornal: O GLOBO Autor:
Editoria: Ciência_e_Vida Tamanho: 1091 palavras
Edição: 1 Página: 44
Coluna:  Seção:
Caderno: Primeiro Caderno  

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